Previsto de forma expressa no Decreto n.º 11.129/2022, o canal de denúncias constitui um dos parâmetros do programa de integridade tratado na Lei Anticorrupção. Muito embora a legislação em questão tenha sido criada no Brasil para a responsabilização da prática de atos contra a administração pública, seu escopo é utilizado amplamente na iniciativa privada como mecanismo de conformidade, ganhando relevância cada vez maior, principalmente no cenário internacional.
O incentivo à denúncia de irregularidades tem tamanha importância que é elencado no art. 56 do Decreto n.º 11.129/2022, que traz o conceito do programa de integridade. Já o inciso X do art. 57 traz os requisitos que o canal deve conter, sobre os quais passaremos a discorrer.
O canal deve ser aberto
O canal de denúncias deve ser disponibilizado para todos que mantêm relacionamento com a empresa a fim de viabilizar o maior alcance possível de informações sobre irregularidades que possam ser cometidas. Sob o ponto de vista trabalhista, é imprescindível que o canal seja acessível a todos os colaboradores, sem distinção de cargo, local de prestação de serviços ou escolaridade. Isso significa que a empresa deve estar atenta a todas as peculiaridades existentes nos seus quadros a fim de atendê-las de forma ampla e igualitária.
Se há colaboradores não alfabetizados, o canal não pode se restringir ao registro de denúncias por escrito e deve possibilitar o seu envio via áudio, por exemplo. Se a empresa optar em usar uma simples caixa de acrílico para denúncias em meio físico e por escrito, deve garantir que elas sejam distribuídas em locais que permitam o acesso de todos e longe da vigilância de outras pessoas, a fim de que o seu uso não cause constrangimento e evite a realização das denúncias, frustrando o seu objetivo principal.
Divulgação ampla a funcionários e terceiros
Para garantir a efetividade do canal de denúncias, é imprescindível que todos que possam fazer uso dele tenham conhecimento da sua existência. Isso significa que além de divulgar de forma ostensiva, a empresa deve informar com clareza os meios de apuração, conferindo segurança e transparência a fim de encorajar aqueles que dele venham a fazer uso.
Anonimato e proteção do denunciante de boa-fé
O Decreto não traz o anonimato como um dos requisitos do canal de denúncias, mas a prática nos ensina que o encorajamento na realização de denúncias vem da segurança de que não haverá represálias em relação aos fatos denunciados. Muitas vezes essa segurança vem somente com a garantia de que o denunciante não será identificado pela comissão que vier a analisar a denúncia realizada.
Há canais externos comercializados no mercado que viabilizam o anonimato sem impedir o contato com o denunciante, que muitas das vezes é imprescindível para a colheita de informações para subsidiar a investigação. Um canal externo, sem ligação com sistemas da empresa costumam conferir maior segurança e confiabilidade aos colaboradores, além de retirar da empresa a responsabilidade de garantia do anonimato em caso de vazamento de dados.
A exigência de proteção ao denunciante de boa-fé, que vem prevista de forma expressa no Decreto, parte de dois pressupostos: 1) que a denúncia não foi realizada de forma anônima ou que foi possível, de alguma forma, identificar o denunciante; e 2) que a denúncia realizada tenha sido realizada com o intuito de apuração de eventuais irregularidades, as quais o denunciante acreditou existir. Como consequência do segundo pressuposto, aquelas denúncias que não foram realizadas de boa-fé devem ser coibidas e até mesmo resultar em responsabilização do denunciante, quando possível e cabível.
Por isso, é imprescindível que essas situações sejam comunicadas com clareza aos colaboradores e terceiros que farão uso do canal, garantindo a proteção a quem fizer a denúncia e comunicando que o mal uso será apenado, a fim de encorajar o uso responsável.
Mecanismos destinados ao tratamento das denúncias
Tão importante quanto possibilitar a denúncia é o tratamento dela. De nada adianta recebê-la e não a investigar ou tomar as providências necessárias. Inclusive, a inércia em relação às denúncias realizadas costuma causar efeitos deletérios à empresa, como quebra da confiança por parte dos colaboradores, baixa da produtividade e até mesmo desligamentos. Por isso, ao decidir instaurar um canal de denúncias a empresa deve estar preparada para instituir um comitê de investigação interna preparado para analisar as denúncias e dar a solução devida a cada uma.
O ideal é que a gestão do canal e das investigações sejam feitas por um terceiro, pois qualquer pessoa de dentro da empresa pode ser alvo de denúncias. É comum que este tipo de atuação seja feito por advogados, pois assim já é feita a análise jurídica de eventuais responsabilidades e penalidades que devam ser aplicadas.
Benefícios e redução de riscos
A identificação de irregularidades possibilita a solução de questões de forma antecipada, evitando prejuízos financeiros, como por exemplo em casos relacionados a desvio de valores, inobservância de procedimentos internos que podem acarretar rompimentos contratuais.
Os resultados na seara trabalhista possuem efeitos que vão desde a construção de um ambiente de trabalho mais saudável, com o fortalecimento da confiança entre os colaboradores e a empresa, até a redução de passivos, com o conhecimento de práticas como assédio moral, sexual etc, o que possibilita a identificação de responsáveis, a implementação de políticas de conscientização e prevenção, ao invés de tomar ciência da situação somente quando se torna uma ação judicial.
Muitas das vezes, o canal e a investigação realizada se tornam formalizações de suma importância para a empresa concretizar um desligamento por justa causa, o que normalmente acaba não sendo realizado sem a sua existência, aumentando sobremaneira os riscos de reversão no Judiciário.
Portanto, apesar de todos os cuidados que o canal de denúncias exige, sua implementação de forma madura e responsável resulta em muitos benefícios para a empresa e reflete o seu interesse em ter uma atuação séria e alinhada com valores que passam a ser cada vez mais exigidos não só por clientes, como por parceiros e prestadores de serviços.
Artigo escrito pela advogada Rayane Carolina Pereira Florence, integrante do escritório Pazzoto, Pisciotta & Belo Advogados.
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