A lei nº 14.181/2021 e a (in)viabilidade do plano de recuperação judicial do consumidor

Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismos, o ano de 2021 encerrou com 76,3% (setenta e seis vírgula três por cento) das famílias brasileiras endividadas, considerando dívidas em cartões de crédito, cheque especial e pré-datados, crédito consignado, pessoal, carnês e financiamentos.

Além disto, recente pesquisa coordenada pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor aponta que 23% (vinte e três por cento) dos brasileiros se encontram na posição de “superendividados”, tendo deixado, até mesmo, de quitar contas de consumo básicas.

Dois fatos relevantes podem explicar o crescimento do fenômeno do “superendividamento” na atualidade: o aumento das relações de consumo no ano de 2021, oriundo do fim da segunda onda de contaminações por Covid-19 no Brasil, o início e avanço da vacinação contra a doença no país e a consequente flexibilização das medidas de isolamento social, bem como pelo crescimento exponencial dos índices inflacionários.

Não é de hoje que o Estado necessitava de um regramento especializado para conter o endividamento exacerbado, especialmente em momentos de crise econômica. Neste contexto, surge a Lei nº 14.181/2021, destinada a alterar artigos do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso, visando trazer melhorias no que tange a proteção do crédito do consumidor e dissertar sobre a prevenção e propostas de solução ao “superendividamento”.

Dentre os dispositivos que buscam alcançar o fito supra apontado, vislumbra- se que os artigos 104-A e 104-B da legislação trazem consigo a possibilidade de instauração de uma espécie de “recuperação judicial do consumidor” com a possibilidade de renegociação de todas as dívidas existentes perante seus credores.

Assim, um consumidor superendividado, ou seja, aquele que o montante de suas dívidas é superior à renda garantidora de sua subsistência, poderá instaurar processo de renegociação de dívidas, se submetendo, inicialmente, a audiência conciliatória na presença de todos os seus credores.

Com base no artigo 104-A, caput, o consumidor deverá apresentar em audiência uma proposta de plano de pagamento no prazo máximo de 5 (cinco) anos, sem trazer cláusulas que possam violar sua dignidade humana e seus direitos constitucionais básicos. O § 5º deste artigo impõe claramente que o pleito do consumidor não configurará em declaração de insolvência civil e que só poderá ser realizado novamente após ultrapassado um lapso temporal de, no mínimo, 02 (dois) anos.

Frisa-se que não são considerados aptos para instaurar determinado procedimento aqueles que dolosamente firmaram contratos sem a real intenção de realizar pagamento futuro, bem como devedores de dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural, por se tratar de projetos ou serviços de luxo ou alto valor financeiro.

Visando impulsionar a conciliação entre as partes, o legislador infraconstitucional impõe que o credor que se ausentar injustificadamente da audiência de conciliação terá a exigibilidade de seu crédito suspenso e a interrupção dos encargos de sua mora, assim como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.

Sendo infrutífera, integral ou parcialmente, a audiência de conciliação, poderá ser implementado um “plano judicial compulsório” a partir do requerimento da parte consumidora em ter seus contratos revistos judicialmente e a repactuar suas dívidas remanescentes perante credores cujos créditos não tenham sido objeto de acordo até o momento.

Instaurado o processo por superendividamento, serão convocados todos os credores que deverão apresentar, em um prazo de 15 (quinze) dias, documentos e razões para sua negativa de aquiescer ao plano voluntariamente ou renegociar a dívida em debate.

Em conformidade com o § 3º deste mesmo dispositivo legal, é permitido ao Juiz nomear um administrador, desde que não onere as partes, para apresentar plano de pagamento em até 30 (trinta) dias.

Ainda sobre este tópico, a “Lei do Superendividamento” assegura ao credor o recebimento de seu crédito corrigido monetariamente pelos índices oficiais, a liquidação, em até 5 (cinco) dias, após a quitação do plano de pagamento firmado em audiência de conciliação, e que a primeira parcela de quitação, se o caso, seja paga em até 180 (cento e oitenta) dias da homologação do plano compulsório.

Em analogia, compara-se este instrumento ao plano de recuperação judicial previsto pela Lei nº 11.101/2005, que incorpora as medidas que serão adotadas pela sociedade empresária, em favor de seus credores, destinando o soerguimento do exercício da atividade econômica da sociedade, em prol do princípio da função social da empresa e da tentativa de esquivá-la da falência.

Da mesma forma, o plano judicial trazido pela Lei nº 14.181/2021 deseja evitar a decretação da insolvência do consumidor de maneira a renegociar suas dívidas tendo em mente a preservação de seu mínimo existencial, ou seja, a manutenção de sua dignidade humana e o custeio de despesas básicas.

Os novos dispositivos legais também impulsionam as instituições bancárias e financeiras a criarem políticas internas, para empréstimo e renegociação de créditos, mais rigorosas e voltadas às especificidades de cada consumidor, sob pena de ter os juros e encargos reduzidos judicialmente, o prazo para pagamento revisto e, ainda, ter que arcar com eventual indenização ao consumidor em razão de sua responsabilidade civil como fornecedora de serviços.

A prática, inclusive, já tem sido reconhecida no âmbito do Poder Judiciário como, à título de exemplo, no acórdão proferido pelo Ilustre Ministro Nuncio Teophilo Neto nos autos do Agravo de Instrumento nº 2005863-34.2022.8.26.0000.

As razões do recurso supramencionado dissertavam sobre a urgência na reforma de decisão que determinou aos réus (instituições bancárias) que limitassem os descontos dos empréstimos contraídos pelo autor a 30% (trinta por cento) e seus proventos. O Relator, por sua vez, deu provimento ao recurso por vislumbrar um verdadeiro “concurso de credores” no caso em julgado, e que, se faria necessário estabelecer uma ordem de preferência de pagamento judicialmente para eles. Nesta toada, fez referência direta em seus fundamentos ao procedimento dos artigos 104-A e 104-B da Lei nº 14.181/2021, justificando sua aplicação no caso em litígio, que a parte autora deixou de observar ao ajuizar a ação pelo rito comum.

No entanto, ainda é inconclusivo uma resposta acerca da adesão aos consumidores ao teor desta lei. Ressalta-se que apenas o consumidor pode pleitear pela instauração do plano judicial, não sendo esta oportunidade estendida a classe dos credores.

Um dos fatores que possivelmente influencie na carência de adesão ao procedimento é o fato deste seguir um rito processual especial, logo, existe a possibilidade de uma tramitação morosa do feito, o que pode ocasionar no desinteresse do consumidor. O processo de recuperação judicial, procedimento especial utilizado em comparação ao previsto na Lei do Superendividamento, por exemplo, em média tende a perdurar por, no mínimo, 02 (dois) anos. A própria legislação prevê que a resolução integral do plano de recuperação do consumidor pode se dar em até 05 (cinco) anos.

Além disto, por se tratar de tratar de um rito especial e demandar dilação probatória mais profunda, o procedimento demonstra incompatibilidade ao rito do Juizado Especial Cível, previsto na Lei nº 9.099/1995, inviabilizando que o litígio seja julgado de forma mais célere.

Não suficiente, não são todas as dívidas dos consumidores que poderiam ser objeto de acordo no plano. A Lei nº 14.181/2021 não alcança créditos do Poder Público diante da ausência de menção específica legal, além de que Agentes Públicos não detêm autonomia para negociar acordos sem o intermédio da Fazenda Pública.

Desta feita, entende-se que o Plano de Recuperação Judicial do consumidor trazido pela “Lei do Superendividamento” é um avanço significativo na legislação consumerista, que atende plenamente aos princípios basilares consumeristas da prevenção e da facilitação da defesa do direito do consumidor. Entretanto, para a extensão da eficácia deste procedimento, resta um maior detalhamento da lei e a solução de problemáticas que envolvem a morosidade do rito especial estabelecido e as negociações das dívidas existentes perante o Estado.

Artigo escrito pelo advogado Filipe Magalhães Pagliarini, integrante do escritório Pazzoto, Pisciotta & Belo Advogados.

REFERÊNCIAS

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