O acidente de trajeto está previsto expressamente no art. 21, IV, d, da Lei n.º 8.213/91, que equipara o acidente de trabalho àquele ocorrido “no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”. O dispositivo em questão tem aplicabilidade no âmbito previdenciário para fins de concessão de benefício de auxílio-doença acidentário, mas sua interpretação foi estendida para o âmbito trabalhista e, com isso, formou-se o entendimento de que o empregador seria responsável por todo acidente sofrido pelo empregado no caminho de casa para o trabalho e vice-versa.
Partindo do pressuposto que a lei em comento trata dos planos e benefícios previdenciários, o acidente de trajeto a que ela se refere deve ser aquele que cause, invariavelmente, incapacidade para o trabalho. Em razão disso, não há como falar do assunto sem atrair a análise da responsabilidade civil por resultar em um dano a ser reparado, notadamente por não envolver o cumprimento estrito de normas e verbas trabalhistas. Em razão disso, a questão deve ser avaliada sob a ótica do Direito Civil, que impõe a verificação de três requisitos: 1) a ocorrência de um ato ilícito; 2) a culpa de quem o praticou; e 3) a existência de relação entre o dano e a culpa.
Por ato ilícito, entende-se aquele que viola o direito de alguém e causa um dano. A culpa, via de regra, será apurada a partir da prática de uma ação, omissão, negligência ou imprudência e, em alguns casos, poderá ser presumida, independentemente de prova da sua ocorrência. Por fim, é essencial que haja relação (nexo de causalidade) entre o dano gerado e a culpa de quem praticou (ou deixou de praticar) o ato.
A partir disso, surge a necessidade de interpretação subjetiva de cada caso, afastando-se a imposição definitiva de culpa da empresa sempre que um empregado se envolver em um acidente enquanto se desloca de casa para o trabalho e vice-versa.
Dessa forma, o conceito de acidente de trajeto trazido pela legislação que trata especificamente de benefícios previdenciários não produz efeitos imediatos na esfera trabalhista, notadamente na relação empresa-trabalhador. Por conta disso, os Tribunais passaram a trazer à discussão os requisitos da responsabilidade civil, já que a empresa não possui controle em relação a um acidente ocorrido com seus empregados no caminho para o trabalho ou no retorno deste.
É indiscutível que o empregador é responsável pela manutenção de um ambiente de trabalho saudável, bem como pela saúde e segurança de seus funcionários e para isso a legislação determina a obediência de uma série de normas a fim de propiciar a efetiva observância de tais determinações. Entretanto, o cumprimento das imposições em questão não pode ultrapassar o âmbito de ingerência do empregador, qual seja, o meio ambiente físico de trabalho e aqueles nos quais o empregado esteja inserido para exercer suas funções.
Ainda que haja um dano ao trabalhador que, via de regra, se machuca fisicamente ou sofre um trauma psicológico em um acidente de trajeto, é preciso identificar o agente causador e a culpa deste. As intercorrências que podem ocorrer durante o trajeto, especialmente no trânsito, não podem ser atribuídas de forma automática ao empregador, por não ter o controle de atos praticados por terceiros completamente alheios à sua atividade.
Além disso, a ausência de responsabilidade do empregador não afasta a possibilidade de responsabilização dos terceiros envolvidos no acidente, cuja participação e culpa deverão ser apuradas pelos mesmos critérios da responsabilidade civil perante a Justiça Comum, dispensando-se apenas o envolvimento da empresa no ocorrido.
A alteração promovida pela reforma trabalhista no §2º do art. 58 da CLT reforça o posicionamento em questão, ao dispor expressamente que o tempo despendido pelo empregado da sua residência até o posto de trabalho, bem como no retorno, seja caminhando ou por qualquer meio de transporte, não é tempo à disposição do empregador e por isso não se computa na jornada.
Se o período em questão não produz reflexos para fins trabalhistas, não se pode admitir a obrigação indiscriminada do empregador para fins de responsabilização civil por eventuais acidentes ocorridos fora do local de trabalho e sem qualquer relação com as atividades exercidas.
Referido entendimento é mitigado apenas nas situações em que o empregado exerce atividade na qual está exposto ao risco de acidente, mediante a direção de veículos ou a realização constante de viagens em serviços nos quais se desloque diretamente a partir da sua residência e retorne a ela a partir de serviços externos. Neste caso, os Tribunais tendem a reconhecer a culpa da empresa, ainda que não haja ingerência direta na ocorrência do acidente, justamente por ter direcionado o empregado a uma função que naturalmente o sujeitaria ao risco de acidentes.
Ressalvada a hipótese acima, a jurisprudência tende a aplicar os critérios da responsabilidade civil aos casos relacionados a acidente de trajeto. Apesar de não haver entendimento robusto e consolidado sobre o assunto, a empresa deve estar preparada para realizar a gestão do risco, pois a ocorrência de um acidente de trabalho gera ao empregador a obrigação de emitir a CAT – Comunicação de Acidente de Trabalho – e a existência do documento em questão muitas vezes é encarada pela Justiça do Trabalho como uma confissão acerca do acidente ocorrido, dificultando o debate acerca dos requisitos da responsabilidade civil e a apuração da existência de culpa da empresa. Por outro lado, uma ferramenta de grande importância é a formalização do relato do ocorrido, no qual o empregado vítima do acidente descreva as condições e os envolvidos, garantindo à empresa a versão dos fatos que exclui a sua participação.
De todo modo, é essencial a análise individualizada de cada caso, a fim de antecipar a prevenção de um possível passivo trabalhista.
Artigo escrita pela advogada** Rayane Carolina Pereira Florence**, integrante do escritório Pazzoto, Pisciotta & Belo Advogados.
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