Da Aparente Contradição entre os Artigos 600 do CPC e 1.027 do Código Civil: Limites da Legitimidade do Ex-Cônjuge para Dissolução Parcial de Sociedade Empresarial

A discussão sobre a legitimidade do ex-cônjuge de sócio para pleitear a dissolução parcial de sociedade empresarial, à luz dos artigos 600, parágrafo único, do Código de Processo Civil, e 1.027 do Código Civil, tem gerado relevantes debates na doutrina e jurisprudência, especialmente em razão da aparente antinomia entre tais dispositivos.

Buscamos demonstrar por meio do presente estudo que, apesar da redação aparentemente conflitante, a interpretação sistemática e teleológica desses dispositivos conduz a uma solução harmônica: o ex-cônjuge não possui legitimidade para requerer a dissolução parcial da sociedade, no entanto, pode exigir a apuração de haveres, desde que o regime de bens do casamento ou união estável assim o permita.

A redação do artigo 1.027 do Código Civil estabelece que os herdeiros do sócio ou o cônjuge separado judicialmente não podem, de imediato, exigir a parte que lhes couber na quota social, devendo, até que se liquide a sociedade, limitar-se à participação nos lucros. Tal previsão visa proteger a continuidade e a estabilidade das atividades empresariais, evitando que questões patrimoniais pessoais de um sócio interfiram diretamente no funcionamento da sociedade.

Por sua vez, o Código de Processo Civil, em seu artigo 600, parágrafo único, introduziu uma inovação relevante ao prever que “o cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio”. Com isso, conferiu-se ao ex-cônjuge um direito específico: a liquidação da quota-parte que lhe cabe, sem que isso implique, necessariamente, a dissolução parcial da sociedade.

Importante destacar que a legitimidade para pleitear a dissolução parcial da sociedade permanece restrita aos próprios sócios ou, em situações excepcionais, a seus herdeiros, quando devidamente autorizados pela legislação.

Caso o ex-cônjuge nunca tenha integrado o quadro societário, a ele é vedado requerer a dissolução, cabendo-lhe, tão somente, pleitear o recebimento do valor correspondente à meação incidente sobre as quotas do ex-consorte, se o regime de bens assim permitir.

Nesse sentido, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, ao lado de Marcelo Vieira von Adamek, bem elucidam a restrição imposta ao ex-cônjuge, nos seguintes termos:

“Por definição, o cônjuge ou companheiro de sócio não é, só por isso, sócio da sociedade da qual este participa e, portanto, no caso de dissolução do casamento ou cessação da união estável, o Código Civil não lhe havia concedido o direito de pedir a dissolução do vínculo societário porque, insista-se, este não existe no que diz respeito àquele que é cônjuge ou companheiro de sócio e também não lhe outorgou o poder de pedir a apuração dos haveres: ‘os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade’ (CC, art. 1.027).”

Os autores esclarecem que a razão subjacente a essa limitação era justamente evitar que eventualidades pessoais dos sócios interferissem negativamente na continuidade da atividade empresarial.

Contudo, com a vigência do novo CPC, a solução passa a ser outra: reconhece-se ao ex-cônjuge ou ex-companheiro o direito de requerer a apuração de haveres, desde que haja direito reconhecido à meação sobre a quota do sócio.

Ainda sobre o tema, Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini reforçam que, embora o capítulo do CPC trate da dissolução parcial de sociedade em sentido amplo, o pedido formulado pelo ex-cônjuge deve restringir-se à apuração de haveres, condicionada ao regime de bens aplicável:

“Embora o capítulo trate da ação de dissolução parcial de sociedade em sentido amplo, o pedido restringir-se-á à apuração de haveres, desde que, naturalmente, o regime de bens do extinto casamento ou união estável assim permita.”

Logo, o que a legislação pretendeu assegurar foi o direito patrimonial do ex-cônjuge à sua meação, sem que isso impacte a estrutura societária ou os interesses dos demais sócios. Os haveres devem ser pagos exclusivamente à conta da quota social do sócio, evitando a imposição de ônus à própria sociedade.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial nº 1.537.107, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, também reforçou tal entendimento ao afirmar que:

“Casamento em regime de comunhão parcial de bens. Partilha de bens. Momento de avaliação da expressão econômica das cotas de sociedade. A participação em sociedade não constitui um patrimônio partilhável, automaticamente, no rompimento de uma relação conjugal, detendo o ex-cônjuge sócio a singular administração da integralidade das cotas do ex-casal. Essa circunstância, que deprime, em nome da preservação da sociedade empresarial, o pleno direito de propriedade do ex-cônjuge, não sócio, pode dar ensejo a manipulações que afetem ainda mais o já vulnerado direito à propriedade. Nessa linha, verifica-se a existência de mancomunhão sobre o patrimônio, ou parte dele, expresso, na hipótese, em cotas de sociedade, que somente se dissolverá com a partilha e consequente pagamento, ao cônjuge não sócio, da expressão econômica das cotas que lhe caberiam por força da anterior relação conjugal. Sob a égide dessa singular relação de propriedade, o valor das cotas de sociedade empresária deverá sempre refletir o momento efetivo da partilha.” (STJ - REsp 1.537.107, Min. Nancy Andrighi, j. 17.11.2016, DJ 25.11.2016)

Portanto, embora exista aparente conflito normativo, a correta interpretação sistemática evidencia que o ex-cônjuge de sócio não possui legitimidade para requerer a dissolução parcial da sociedade. Sua atuação judicial limita-se ao pedido de apuração de haveres, cujo valor deverá ser pago à conta da quota social do ex-consorte, respeitando-se os limites impostos pelo regime de bens e assegurando-se, simultaneamente, a estabilidade das relações societárias e os direitos patrimoniais do meeiro

Artigo escrito pela advogada Daniele Caroline Vieira Lemos de Souza, integrante do escritório Pazzoto, Pisciotta & Belo Sociedade de Advogados.

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