O artigo 19 da lei nº 12.965/2014 (marco civil da internet) e sua adequação a legislação e realidade brasileira

1. INTRODUÇÃO

O direito é reflexo do desenvolvimento da sociedade sendo adaptado conforme os paradigmas morais, tecnológicos e interpessoais se alteram. Desse modo, na realidade contemporânea de barreiras reduzidas e crescimento exponencial do tempo conectado, tornou-se inevitável a regulação dos ambientes digitais.

Foi com essa necessidade de adequação do direito formal à realidade fática que, em 23 de abril de 2014, foi promulgada a Lei n. 12.965/2014, o Marco Civil da Internet. O reduzido bojo de dispositivos aponta que o legislador não procurava exaurir todos os aspectos das relações digitais, mas estabelecer parâmetros gerais de análise e intepretação.

Neste contexto, surge o objeto da presente da presente análise, o art. 19, cuja redação dispõe:

_Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. _

_§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. _

_§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. _

_§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. _

_§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. _

Da leitura do dispositivo, identifica-se a intenção do legislador de fixar um ponto interpretativo para regular o paradoxo da relação entre a liberdade de expressão e a responsabilidade civil.

Esse tema, notoriamente controvertido, ganhou novos contornos com a Decisão exarada na Petição 12.404 do Distrito Federal, na qual o Relator, Ministro Alexandre de Moraes, suspendeu as atividades do “X Brasil Internet Ltda” (antigo Twitter) em todo o território nacional, utilizando o art. 19 da Lei n. 12.965/2014 como fundamento para responsabilizar a rede social pela recusa em cumprir uma decisão judicial.

A abrangência e relevância dessa decisão trouxe discussões acaloradas acerca da concomitante tentativa de proteger a liberdade de expressão e evitar que ela seja utilizada como meio de proteção ao discurso de ódio, disseminação de notícias falsas e má formação da opinião pública.

Assim, com o avanço nas discussões acerca da regulamentação do ambiente digital, que está em constante expansão, o art. 19 da Lei n. 12.965/2014 tende a ocupar posição de destaque no ordenamento jurídico._ _

**2. ASPECTOS IDEOLÓGICOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR CONTEÚDOS DE TERCEIROS E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO  **

Como anteriormente pontuado, da redação do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 surgem-se dois posicionamentos aparentemente divergentes. O primeiro, enxerga a responsabilização instituída como branda, ao passo que permitiria a manutenção de conteúdos potencialmente danosos até um posicionamento judicial, muitas vezes moroso e ineficiente.

Nessa linha, aguardar a tutela jurisdicional para ocorrências da internet, caraterizadas pela celeridade de dissipação informacional e amplo impacto, implicaria na ineficácia do dispositivo legal, na medida que o objetivo de mitigar ou evitar os danos decorrentes das condutas de terceiros não seria alcançado dado o lapso temporal entre a postagem, descoberta do dano e decisão judicial. ** **

Esse posicionamento ganha especial valorização no contexto geopolítico contemporâneo, em que a utilização e o compartilhamento de notícias falsas tornou-se ferramenta padrão nos embates políticos e ideológicos.

Ademais, a ostensiva adoção de posicionamento político por parte das empresas detentoras de redes sociais, como o “X” e “Meta”, aprofunda a discussão que determinados conteúdos e notícias, potencialmente falsos ou danosos, são artificialmente impulsionados por atenderem a mero enviesamento político.

Consequentemente, na guerra de desinformação, o grupo com meios de alcançar mais pessoas irá se sobrepor aos demais, enquanto a população que deveria ser protegida pela liberdade de expressão é vítima da utilização deturpada deste preceito.** **

Distanciando-se do aspecto macropolítico, a falta de agilidade na remoção dos conteúdos pode vir a ser um catalizador do discurso de ódio, que se alimenta da deficiência de informações e preconceitos irracionais.

Nesta linha de intelecção, mesmo com a possibilidade de ressarcimento dos danos decorrentes de postagens judicialmente declaradas como ilegais, como previsto no parágrafo terceiro do artigo 19 da Lei n. 12.965/2014, resta claro que o prejuízo a coletividade sequer pode ser mensurado, e, tampouco indenizado.

Isso porque a desinformação apaga as linhas limítrofes entre o real e o imaginário, certo e errado, tornando os consumidores como meros receptáculos de conceitos falsos e manipulação. Ideias antes concebidas e assimiladas pela população passam a ser ressignificadas com conceitos falsos, esvaziando a possibilidade do debate baseado em fatos.

Por outro prisma, o segundo posicionamento sobre o ponto debatido, estipula a responsabilização por conteúdo de terceiros como afronta direta a liberdade de expressão, princípio norteador tanto do Marco Civil quanto da Constituição Federal.

Sob essa ótica, ao se remover a necessidade de decisão judicial, as empresas poderiam explorar ainda mais o compartilhamento de posicionamentos enviesados, sob o manto do risco judicial.

Além de agravar a má conduta das empresas, a responsabilização sem a necessidade de decisão judicial significaria um aumento da insegurança jurídica e um óbice à própria liberdade expressão, na medida em que a pluralidade de vozes ficaria refém dos detentores do poder para decidir o que pode ou não ser publicado.

Dessa forma, clarividente que o art. 19 da Lei n. 12.965/2014 é permeado por posicionamentos conflitantes sobre as consequências de sua manutenção ou não no ordenamento jurídico, estando ambos os lados munidos de argumentos e preocupações válidos.

**3. ASPECTOS LEGAIS DO ARTIGO 19 DO MARCO CIVIL **

Feita a pequena exposição sobre os aspectos ideológicos intrínsecos à controvérsia do artigo 19 da Lei n. 12.965/2014, é imperioso que a discussão derive para o aspecto jurídico do objeto de análise.

A discussão deste artigo delimita-se sobre a responsabilidade daqueles denominados em lei como provedores de aplicações, cuja definição utilizada deriva da intepretação conjunta do disposto no artigo 5, inciso VI do Marco Civil e da Webopedia sobre Online Service Provider (OSP). Logo, podem ser definidos como uma organização, empresa ou grupo que disponibilizem ferramentas ou funcionalidades que podem ser acessadas pela internet. (CEROY, 2020)

Ainda em caráter preliminar, remora-se que a liberdade de expressão, ponto nodal de toda a discussão, é preceito fundamental de toda legislação brasileira, na forma do artigo 5º, inciso IV da Constituição Federal.

Em contraste, a ausência de responsabilização até a decisão judicial, é para alguns juristas, uma afronta direta a outro princípio constitucional, a proteção da dignidade humana, uma vez que a morosidade na remoção ou suspensão de conteúdos danosos a determinado grupo é suficiente para disseminação e enraizamento do discurso violento.** **

O próprio parágrafo 4º do artigo 19 do Marco Civil, em uma tentativa de dirimir os danos enraizados pelo tempo de permanência do conteúdo danoso, trouxe requisitos para a concessão da tutela antecipada. No entanto, a exigência de prova inequívoca do fato ou danos à coletividade acaba por limitar muito a eficácia da medida, em favor da segurança jurídica.

Em outro giro, o referido dispositivo é omisso quanto a modalidade de responsabilidade originária de sua violação, se objetiva ou subjetiva. Dessa forma, seguirá o regramento do Código Civil, sendo subjetiva de regra e objetiva em casos que configurada a relação consumerista. ** **

No aspecto consumerista, também deve se destacar que a falha do provedor em retirar conteúdos nocivos ou danosos é um defeito no serviço, atraindo sua reponsabilidade face aos usuários e terceiros vitimados.

Nesta senda, a redação atual do artigo 19, ao proteger indiscriminadamente a liberdade de expressão, acaba por fornecer poucas alternativas àqueles prejudicados por conteúdos postados em provedores de aplicação, permitindo a disseminação e aprofundamento de condutas anticonstitucionais.

Apesar da validade do receio de censura na hipótese de abrandamento dos requisitos para a responsabilização dos provedores, deve-se considerar que estes podem remover, promover ou limitar o alcance de conteúdos em desacordo com suas políticas internas. Isto é, a liberdade de expressão é limitada pelo próprio modelo de negócios adotados pelos provedores de internet.

A discussão sobre a Constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil já produziu inúmeros embates jurídicos e posicionamentos contrastantes entre interpretações judiciais, de maneira que teve sua repercussão geral reconhecida julgamento do Recurso Extraordinário 1.037.396 e se tornou objeto do Tema n. 987 levado a julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), com relatoria do Ministro Dias Toffoli. ** **

No referido recurso, o provedor de aplicação é a “Meta” (Facebook) que deixou de tomar providências sobre um perfil falso utilizando nome de uma consumidora, diante da ausência de decisão judicial.

O Tema ainda está sendo objeto de julgamento, sendo que o Relator já emitiu voto favorável a inconstitucionalidade do art. 19, bem como a atribuir aos provedores por eventuais danos ocorridos no espaço virtual, considerando, inclusive, a interferência algorítmica e responsabilidade objetiva para casos descritos em um rol taxativo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos que o artigo 19 do Marco Civil ocupa posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, tanto pela sua importância no mundo digital quanto no aspecto de sua constitucionalidade, haja vista a liberdade de expressão somada à limitação trazida para conteúdos danosos à coletividade ou indivíduos.

Diante desse cenário, o dispositivo é utilizado como mecanismo de inimputabilidade pelos provedores em detrimento dos usuários e afetados. Tudo isso é agravado pela crescente disseminação de discursos de ódios e notícias falsas, que ficam disponíveis por tempo suficiente para gerar danos irreversíveis.

Em que pese a constitucionalidade do artigo 19 ainda ser objeto de discussão, não se pode ignorar que o dispositivo necessita de alterações para melhor refletir a realidade, protegendo os direitos individuais e coletivos, bem como a celebrada liberdade de expressão.

Artigo escrito pelo advogado** Paulo Henrique Andrade Machado**, integrante do escritório Pazzoto, Pisciotta & Belo Advogados.

**5. BIBLIOGRAFIA **

BRASIL, Decreto Lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em: 15 de janeiro de 2025.

BRASIL, Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 2020. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm> Acesso em: 15 de janeiro de 2025.

BRASIL, Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm Acesso em: 15 de janeiro de 2025.

BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias,

direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: < https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/30054611/do1-2014-04-24-lei-n-12-965-de-23-de-abril-de-2014-30054600>. Acesso em: 15 de janeiro de 2025

BRASIL, Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L13105.htm Acesso em: 15 de janeiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Coordenadoria de Biblioteca (org.).

Responsabilização civil de provedores por conteúdo ilícito gerado por

terceiros: bibliografia, legislação e jurisprudência temática. Brasília, 2020.

Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBiblioteca/anexo/Responsabilidadecivil0525Edipe5.pdf. Acesso em: 15 de janeiro de 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema

  1. Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco

Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5160549&numeroProcesso=1037396&classeProcesso=RE&numeroTema=987. Acesso em: 15 de janeiro de 2025

CEROY, Frederico Meinberg. Os conceitos de provedores no Marco Civil da Internet. Migalhas, 2020. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/211753/os-conceitos-de-provedores-no-marco-civil-da-internet> Acesso em: 01 de maio de 2024.

LARA, Helio Cezar. Democracia e internet: as novas possibilidades na formação da opinião pública. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-07022014-074232/. Acesso em: 15 de janeiro de 2025.

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SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada: O debate contemporâneo. São Paulo: Ed. Ática. 1994.

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