A compatibilização das Online Dispute Resolutions (ODR) com as garantias processuais individuais e coletivas

Justiça e tecnologia. A aproximação entre as duas esferas não é fenômeno recente – e é possível afirmar que tal experimento ganhou força durante e após a pandemia da COVID-19 no Brasil. Isto porque não restou alternativa senão utilizar os meios digitais para promover a mediação, conciliação, oitiva de testemunhas e partes, dentre outros atos.

Com isso, tornou-se cada vez mais comum a utilização de ferramentas digitais como o Teams, Google Meet, e outras plataformas mais desenvolvidas, como aquelas ofertadas por companhias aéreas para viabilizar acordos judiciais, por exemplo.

Também ganharam destaque, nesse cenário, plataformas viabilizadas pelo próprio Estado, eis que os serviços administrativos também estavam sendo realizados à distância. Exemplo de plataforma nesse sentido foi o PROCON/SP, cujas reclamações saltaram de 300 mil em 2020 para quase 500 mil em 20211. Salienta-se que a plataforma, a partir de um espaço denominado “consumidor”, possibilitou a efetivação de reclamações online, as quais são encaminhadas para a pessoa jurídica reclamada com a finalidade de estabelecer um canal de comunicação.

Nessa linha de intelecção, consoante estabelece Paula Ferreira Bovo2 (2021, p. 563) há, hoje, uma tendência de permitir e incentivar que as partes resolvam seus litígios de forma autorrepresentada e, dentro desse contexto, surgem as chamadas “ODR” (Online Dispute Resolution), amplamente definidas como “a aplicação da tecnologia da informação e das comunicações à prevenção, gerenciamento e resolução de disputas” (NULES, 2020, p. 19, APUD BOVO, 2021, p. 562).

Para que possamos visualizar a relevância do tema da autorregulação, convém trazer alguns dados reunidos pelo Relatório Analítico Propositivo, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, no ano de 20183. No Estado de São Paulo, os 30 (trinta) maiores litigantes acumulam 60,4% dos processos, sendo que, deste montante, as instituições financeiras representam 40,3% (2018, p. 74).

Na esfera de contratos bancários, apenas seis temas contemplam 91,6% do total de ações movidas em face de instituições financeiras, sendo o assunto mais discutido a “interpretação/revisão de contrato” (2018, p. 77).

Logo, de uma análise superficial dos dados relatados conclui-se o inchaço do Judiciário no Estado de São Paulo com ações idênticas, dentro da seara de direito consumerista, concentradas em torno de seis temas, sendo um deles o campeão de distribuição de demandas. E não somente chegamos a essa conclusão, como, igualmente, pode-se dizer que o tema mais debatido no Judiciário do Estado de São Paulo – revisão/interpretação de contratos – certamente obteria melhores resultados se ambas as partes se dispusessem a chegar em um denominador comum.

Assim, a terceira conclusão que pode ser estabelecida é a de que as “ODR” exercem uma função relevante na redução do inchaço da máquina judiciária, justamente por se tratarem de plataformas que permitem/viabilizam um canal de comunicação entre os litigantes, antes da formação do litígio.

Lado outro, a efetividade dessa comunicação pode ser verificada pelos números disponibilizados pelo PROCON/SP4, por exemplo. Ao filtrarmos os resultados no “índice de resolução” para o ano de 2023, delimitando o assunto em “atendimento bancário”, das empresas que tiveram até quinhentas reclamações, uma média de 54% dessas reclamações foi resolvida através da plataforma. Das empresas que tiveram até cem reclamações, 100% delas foram extirpadas por meio do espaço do consumidor.

Portanto, também não se pode questionar a efetividade desse meio de resolução alternativa de conflitos.

Inobstante, a pergunta que remanesce é: qual foi o tipo de resolução obtida através da plataforma do PROCON/SP? Será que foi a melhor resolução para o consumidor? Será que esse consumidor estava totalmente ciente de seus direitos e obrigações quando aceitou um acordo ou uma condição por meio da plataforma de resolução online? Essas questões representam a controvérsia que envolve as “ODR”.

Como se sabe, no decorrer de julgamentos semelhantes no Judiciário, formam-se precedentes que passarão a ser aplicados nas demandas futuras, trazendo, assim, segurança jurídica. Dessa última decorre a certeza do cidadão de que não obterá resultado diferente daquele obtido por outro, em litígio idêntico. Em outras palavras, é a certeza de que eventual indenização obedecerá um padrão, ressalvadas as devidas pertinências de cada caso. Vale a menção à expressão utilizada por Paula Ferreira Bovo (2021, p. 569) de que o Judiciário acaba sendo um balizador das condutas de repeat players.

Por outro lado, haja vista que as “ODR” se valem de um canal de comunicação estabelecido diretamente entre reclamante e parte reclamada, sem a atuação de um intermediador (na grande maioria dos casos), não há como se garantir que um determinado padrão será aplicado para demandas semelhantes. E, essa inexistência de “vigilância” pode obstaculizar a efetivação das garantias processuais a que todos têm direito.

Ademais, não se pode esquecer que a maior parte das demandas levadas às “ODR” se traduzem em litígios envolvendo o direito do consumidor, o que faz presumir que uma das partes encontra-se em situação de hipossuficiência e vulnerabilidade em relação à outra.

Dentre as garantias que restam fragilizadas no sistema das “ODR” poder-se-á elencar, principalmente, a imparcialidade e a existência (ou não) de igualdade material entre os indivíduos envolvidos no litígio. A imparcialidade, na hipótese das plataformas de autorresolução, pode ser caracterizada como a inexistência de elementos que possam conduzir a decisão do indivíduo, permitindo-lhe uma tomada de decisão racional. Já a igualdade material consubstancia-se na condição de igualdade – intelectual, técnica e/ou financeira – entre os indivíduos envolvidos no litígio.

Isso porque, não são raros os casos em que de um lado temos um conglomerado empresarial, acompanhado de seu corpo jurídico e assistentes técnicos para a redação de uma proposta de acordo, e do outro lado o “homem médio”, desacompanhado de um patrono, talvez, sem o conhecimento técnico apropriado sobre o tema envolvido no próprio litígio. Como seria possível garantir a igualdade material nesse caso?

Já a parcialidade se denota especialmente das plataformas privadas de autorregulação, criadas pelas próprias instituições, nas quais há elementos por toda a parte estimulando uma determinada conduta a ser adotada pelo interlocutor, geralmente acompanhadas de jargões como “última oportunidade”, “sem possibilidade de renegociação”, dentre outros.

De todo o escorço apresentado até aqui, a conclusão lógica que se extrai é que as “ODR” representam um efetivo mecanismo de “desafogamento” do Poder Judiciário, mas que, entretanto, caso não sejam bem construídas e fiscalizadas, podem acarretar um duplo problema: a renúncia por parte do cidadão de uma garantia processual, e a oneração do Judiciário com uma nova gama de demandas, relacionadas a acordos mal feitos.

No entanto, com o acesso à tecnologia e às informações sendo ampliado, permitindo, àqueles que tenham interesse, estudar/pesquisar sobre determinado tema, as “ODR” representam mais benefícios do que malefícios nos tempos modernos.

Artigo escrito pela advogada Isadora Volpon Berto, integrante do escritório Pazzoto, Pisciotta & Belo Advogados.

REFERÊNCIAS:

BOVO, Paula Ferreira. Relações entre a arquitetura de escolhas das plataformas de resolução de litígios online e a vulnerabilidade das partes autorrepresentadas. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 15. Volume 22. Número 2. Maio a Agosto de 2021. ISSN 1982-7636. pp. 559-585.

Conselho Nacional de Justiça. Políticas públicas do Poder Judiciário : os maiores litigantes em questões consumeristas : mapeamento e proposições / Conselho Nacional de Justiça; Associação Brasileira de Jurimetria; Coordenação Marcelo Guedes Nunes e Fábio Ulhoa Coelho . – Brasília: CNJ, 2018.

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